A Mansão da vida
A vida é uma enorme mansão. Podemos viver nela ou fora dela, mas por mais que se tente, nunca nos conseguimos afastar. O nosso pensamento é arrastado para os seus corredores intermináveis, para as grandes alas que revelam segredos de novas fases da nossa vida e outras que se encerram para sempre, podendo apenas ser visitadas pelo nosso pensamento ou nos nossos sonhos.
Nascemos e crescemos na mansão. Quando morremos ela desaparece ou transforma-se caso seja partilhada com outras pessoas. Em criança brincamos nos seus jardins, trotamos nos seus corredores, galgamos as suas escadarias e damos asas à nossa imaginação no quarto dos brinquedos.
Fecho os olhos e o meu coração dispara numa corrida desenfreada pelo bosque circundante. De pé nos estribos, inclinada sobre o pescoço do meu puro sangue Árabe cor de fogo, regulo o meu batimento cardíaco pelo dele e ouço o seu resfolegar. Sob os seus cascos os trilhos cobertos pela fina geada crepita. O cortante ar frio fustiga-me o rosto e os olhos fazendo rolar pesadas lágrimas que correm pela face caindo no pescoço do meu magnífico corcel. Como se o mundo deixasse de existir. Apenas o bosque e a possante criatura que generosamente me carregava no seu dorso numa cavalgada através dos sentidos onde o odor forte do eucalipto e do pinheiro se mistura com o vento frio e o canto suave de um Pisco e logo de um Melro que se junta a esta divina sinfonia cadenciada pelo troar dos cascos de uma das mais corajosas criaturas de Deus.
O meu bosque faz parte da minha mansão e embora agora, parte do passado é um dos locais que mais visito em pensamento e onde guardo o meu mágico amigo cor de fogo.
A minha mansão tem mais espaços exteriores do que interiores. Os jardins estão repletos de criaturinhas maravilhosas. Gosto de me sentar num banco de jardim no local mais elevado e passar horas a ver os meus coelhinhos saltitantes com as suas felpudas caudinhas brancas, brincando sem receios. Às vezes ainda vejo o grande coelho branco com algumas riscas azuis que fazia os meus encantos em pequena. Vejo também o grande tanque de água cristalina que faz as delícias de todos os patinhos e gansos que criei e que me seguiam como se fosse sua mãe. Agora não precisam da criança que os guiava com carinho, criança essa que os gansos tão bem defendiam de intrusos. Com grande algazarra espadanam a água com as suas longas e pesadas asas para mergulhar em seguida volteando por todo o fundo do tanque, soltando das suas penas uma miríade de bolhinhas de ar que se apressam a subir à superfície.
É o mundo dos sonhos da vida que já vivemos onde a realidade e a pintura do pensamento se mistura como numa linda aguarela.
Como qualquer mansão da vida, também a minha tem as suas caves sombrias e os seus sótãos poeirentos. O seu fantasma que tanto gostava de se fazer ouvir quando alguém ficava só descendo em passos firmes a escada de caracol que vem do sótão nunca chegando a mostrar o seu rosto.
À medida que envelhecemos a mansão confina-nos a um espaço cada vez mais pequeno onde um mundo infinito se abre na nossa imaginação. Quando perdemos alguém de família é mais uma ala que se fecha. O espaço que habitavam na nossa mansão da vida.
Vejo encerrar mais um espaço ensolarado que fez grande parte da minha vida, sobretudo da minha infância. Enquanto a pesada porta se fecha tenho breves vislumbres do que continha, um pequeno castelo na Ajuda com uma pequena salinha cheia de Sol e um pequeno canário amarelo de uma só pata que cantava na esperança de ser um dia ouvido por uma companheira. Vejo também uma enorme sala num edifício antigo onde senhoras aprendiam artes plásticas sob as diretrizes da minha jovem tia. Vejo uma enorme varanda sobre o Tejo, um apartamento ao lado de uma mata densa cujos caminhos toscos cobertos de areia e agulhas de pinheiro percorríamos até à praia onde passava os dias com os meus primos. Ainda me lembro do cheiro agradável dessa mata. Tenho ainda tempo para visitar um quarto de um hotel de praia e dar um último abraço aos meus queridos tios antes da porta se fechar para sempre.
Controlamos tanto o nosso destino como a esta mansão que parece ter vida própria. Portas que se fecham sem misericórdia e sem aviso privando-nos da companhia de pessoas que nos são queridas. Portas que se abrem com igual violência empurrando-nos por vezes para destinos incertos. Obrigando-nos a seguir em frente e explorar novas alas, escadarias e corredores.
A minha mansão tem tanto de turbulento como de pacífico e está bem recheada de contrastes, mas conheço mansões bastante mais negras com jardins espinhosos e labirintos intermináveis.
Quando era pequena a vida era simples e banhada pelo Sol. Os dias eram grandes e lentos. As melhores recordações que guardo dessa época ficam-se pelos jardins e bosques onde brincava com os meus amiguinhos do reino animal e o meu cavalo cor de fogo. Apreciava como poucos toda a criação de Deus e tinha muita pena daquelas crianças que passavam todos os dias dentro de paredes, condenadas a uma vida citadina sem nunca pisarem a erva fresca ou ouvirem o silêncio ensurdecedor de uma noite de luar no campo. Onde também me sentia no paraíso era dentro de água fresca e cristalina, sobretudo no mar de Sagres. Gostava de ficar imersa na água sem me mover para não perturbar a sua superfície, olhando as montanhas que se erguem ao longo da praia sentindo a brisa quente de cheiro adocicado que descia pelo vale e entrava pelo oceano, o cheiro das maravilhosas Estebas. Sentia-me um peixe, uma parte dos elementos que me rodeavam e pareciam absorver-me. O mar sempre me deu uma enorme sensação de paz.
Tive uma infância feliz, solitária talvez, no entanto nunca me senti só. A minha família direta era constituída por pai, mãe e um irmão mais velho. Não me lembro muito da presença deles na minha infância, tirando as pequenas passagens em que o meu irmão se entretinha a atormentar-me, coisa de crianças, lembro-me sobretudo do meu pai. Quando nadávamos juntos ou remávamos o nosso quase lendário barquinho de borracha que fazia as delícias de toda a família e que eu remava com força e destreza. Lembro-me muito dos tempos da quinta, o meu pai e eu íamos tratar dos cavalos depois do jantar e por vezes ficávamos sentados em fardos de palha a olhar o céu cravejado de estrelas e planetas que brilhavam intensamente longe das luzes das cidades. Gostava de ouvir as suas histórias enquanto, à vez, os cavalos eram soltos na eira para beberem água e brincarem à nossa volta. Outra grande ala que apenas posso visitar em pensamento ou nos meus sonhos.
Sou feliz! Porque amo as pequenas coisas. Sou feliz porque Deus me permitiu ter uma filha maravilhosa. Sou feliz porque sei apreciar toda a criação de Deus, desde a mais pequena erva ou flor ao maior mamífero da Terra. Sou feliz mesmo quando tenho muito pouco porque o muito pouco me é suficiente. Sou feliz porque tive a sorte de Jesus bater na minha porta e ter tido o bom senso de o deixar entrar. Só Ele dá aquela alegria que só se sente dentro do coração e nos faz sorrir mesmo na adversidade. Sou feliz porque sou invisível no mundo dos Homens.
A minha mansão já foi rica e bem decorada, agora os corredores e salões estão quase vazios mas têm tanta luz e alegria, porque será que me sinto cada vez menos pobre?
A minha mansão é humilde, mas tem jardins maravilhosos, bosques viçosos repletos de animais felizes e um cavalo cor de fogo. Está plantada nas margens de um mar de águas mansas e cristalinas. Está embalada pelo canto das aves. Tem flores nas grandes janelas e o sol inunda as suas vastas salas onde gatinhos brincam alegremente com os seus amiguinhos que já partiram porque um dia tive a sorte de criar gatinhos Bosques da Noruega. Que mágicas criaturinhas são e que lindas histórias tenho para contar. Na minha mansão tenho ainda quatro cadelinhas, duas já partiram. Esta mansão partilho com a minha querida filha que tem uma visão do mundo semelhante à minha. Tenho ainda mãe, um irmão e primos, mas creio que vivem em alas um pouco diferentes pois todos temos a nossa mansão que construímos ao nosso formato.
A minha mansão da vida é assim e é feliz! Como é a sua?
Lindo! Ler esse texto traz tanta paz, tanta coisa boa....uma delícia de leitura.
ResponderEliminarE que curiosa coincidência, o texto tem muito a ver com o tema central do livro que estou a escrever: as diversas maneiras como podemos encarar nossa vida. Ah, e minha mansão tem muito em comum com a sua rsrs, graças a Deus! Parabéns Ana, adorei o texto ❤️
Que bom que gostou. Esse texto tomou forma no meu pensamento quando a minha tia faleceu, como já tinha perdido o meu tio também, senti que uma parte da minha vida se encerrava para sempre, ficando apenas as memórias.
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